Tocalino

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Uma Breve História do Consumo
Caveat Emptor! Alea Jacta Est.
Atenção, consumidor! A sorte está lançada.
Sebastião Buck Tocalino, 16 de março de 2014

Sou fã das antigas aventuras de Asterix - aquelas assinadas ainda por Rene Goscinny. Depois de sua morte, em 1977, os livros se tornaram cada vez menos interessantes. Mas os primeiros 23 volumes são joias da literatura em quadrinhos. As aventuras cheias de caricaturas históricas e culturais se passam na era antes de Cristo, durante o império romano de Júlio César.

"Obelix e Companhia" foi a última estória escrita por Goscinny. Ali, seu humor abordou vários aspectos da economia (política, formação de mercado, propaganda, consumismo, sindicalismo, protecionismo, comportamento de manada e bolha financeira). Como de costume, Goscinny estava inspiradíssimo e os desenhos de Uderzo não ficaram devendo em nada!

Uma amostra dos excelentes quadrinhos de Asterix:

recomendo as primeiras 23 aventuras de Asterix

O conceito abordado pelo fictício estrategista de Júlio César, Regius Velhacus, tem nome na literatura. Em 1899, o sociólogo e economista Thorstein Veblen criou o termo "consumo ostensivo" (conspicuous consumption), definindo o consumo manifestado como base para inserção social. A mesma ideia também é revelada pela expressão "keeping up with the Joneses" (procurando ostentar o mesmo consumo e estilo de vida dos vizinhos).

Na verdade, esse comportamento talvez nem seja reconhecido ou confesso. Seu apelo é muito mais emocional e impulsivo (ou compulsivo), mas bastante previsível.

Ao explorar as estantes de uma livraria outro dia, me deparei com o livro "Darwin Vai Às Compras". Não comprei, mas ainda quero ler. O autor Geoffrey Miller levanta a questão logo de cara: "Como podemos descrever o consumismo, quando ele é o oceano e nós somos o plâncton?"

Quem entende a participação das redes sociais na economia, conhece bem esse novo filão de marketing e propaganda. Fotos e mensagens, de incontáveis "amigos" virtuais, expondo estilos de vida e hábitos de consumo (roupas, ambientes, viagens, noitadas, restaurantes, eletrônicos, carros, imóveis, perfumes, etc.) tendem a aguçar em outros o desejo de gastar com aquilo que antes nem pensavam muito. A fórmula é simples: exposição, tentação, contágio e consumo!

Mesmo a migração de pessoas do campo para a cidade é um estímulo ao consumo. Populações urbanas são constantemente seduzidas a gastar mais. Não apenas pela propaganda nas ruas, mas também pelo maior contato com outras pessoas e a percepção do que elas fazem, têm e ostentam. Até o número de filhos da população urbana se reduz para não privá-la de todo seu potencial de consumo com moda, aparelhos e distrações.

Falando de consumo discricionário (com bens e serviços não essenciais), fica interessante fazermos uma retrospectiva:

Apesar do Homo sapiens caminhar no planeta há 200.000 anos com o mesmo potencial cerebral de hoje, a história de nossa espécie foi quase toda de vida rústica e nômade. Por quase todos esses dois milhares de séculos, vivemos como selvagens cognoscentes na natureza! A primeira transição de caçadores / coletores nômades para agricultores foi muito recente, há 12 mil anos atrás - nos últimos 6% da nossa longa saga.


E as primeiras civilizações só surgiram há 6.000 anos (nos últimos 3% de nossa existência), quando a revolução agrícola viabilizou alguns povoados permanentes nos vales e margens dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Foi mais ou menos quando passamos da Idade da Pedra Polida (neolítico) para a Idade do Cobre (metalurgia). Mas as condições gerais de vida permaneciam de mera subsistência. Ainda hoje é assim para parte da população em algumas comunidades e regiões do planeta. Em pleno século XX, a cultura dos próprios índios brasileiros ainda era da idade da pedra (tribos andinas já praticavam metalurgia bem antes).

A oportunidade de consumir bens ou serviços não essenciais, de forma mais distribuída e significativa, só se tornou relevante depois de a era industrial se encontrar já bem avançada. Antes da revolução industrial, mesmo a exploração da mão de obra escrava não possibilitava um expressivo ganho em produtividade e capacidade de consumo. Pelo menos não de forma disseminada. Só depois de a engenhosidade humana libertar nossa espécie da fome crônica, permitindo que a produção superasse os níveis de mera subsistência, é que a poupança encontraria ambiente para se manifestar. A poupança ou, ao contrário, o consumo de bens e serviços não essenciais. Máquinas movidas a carvão mineral pouparam tempo e energia humana. A maior produtividade barateou e facilitou o acesso ao consumo. E, só no século XIX, uma parcela considerável da população, com predisposição inata ou adquirida para adiar o consumo, pôde de fato praticar tal parcimônia. A opção entre poupar ou consumir se fazia então mais relevante. Veja que isso só se tornou mais conspícuo há 150 anos, nos recentes 0,075% da nossa epopeia. As (no mínimo) 7.994 gerações de H. sapiens anteriores aos nossos tetravós (6 gerações atrás) consumiam praticamente só o indispensável e nem por isso faziam um pé de meia!


Em janeiro de 1901, outro fato mudou a história do mundo. Os irmãos Hammill, no Texas, usaram uma broca rotativa para exploração de petróleo, viabilizando a extração e o uso desta fonte de energia em maior escala. Muito mais eficiente que o carvão mineral, o petróleo barateou e aumentou ainda mais a produtividade. As linhas de montagem se multiplicaram e o consumo se acelerou no século XX.

A urbanização também se intensificou, impulsionando fortemente o consumo. Em 1947, as zonas rurais continham 18% da população dos EUA. Cerca de 50 anos depois, ao inicio do século XXI, a parcela rural se reduzira a apenas 2% da população.

Essa sede de consumo no ocidente gerou grandes oportunidades para a abertura do mercado chinês, cuja mão de obra era extremamente barata. A partir dos anos 1980s, a industrialização e as exportações despertaram a economia do gigante asiático. Reservas internacionais foram sendo acumuladas pela China e investidas nos EUA. A conversão de Yuan para dólar ajudou a conter a valorização da moeda e dos produtos chineses, preservando a competitividade das exportações. Isso contribuía para a liquidez financeira e maior oferta de crédito no ocidente, baixando os juros e financiando ainda mais consumo.

Os empréstimos bancários multiplicam a quantidade de dinheiro circulante (efeito multiplicador monetário) estimulando o consumo. Foi essa alavancagem do crédito, e não um crescimento da renda pessoal disponível, que impulsionou a economia global. O padrão de vida se elevou adiantadamente, à custa de hipotecarmos nosso futuro. Os juros são o preço da pressa, e a dívida... Resta ser paga! Os gráficos abaixo mostram como o endividamento do setor privado (que inclui pessoas, empresas e instituições financeiras) veio se acelerando muito acima do crescimento econômico (PIB) e da renda pessoal disponível.


Capacidade de poupar, adiando o consumo, não é um traço muito marcante nas sociedades ocidentais atuais. A preferência pelo presente e o comportamento de manada são características dominantes, que impulsionam o consumo e sufocam a poupança. O consumo exagerado também é fruto de uma confiança nas proteções sociais e econômicas, politicamente prometidas, como empregos, seguro desemprego, aposentadoria e assistência à saúde. Por razões demográficas e econômicas, essa confiança poderá se mostrar bastante frustrada em alguns anos!

A poupança que financia o consumo ocidental vem da Ásia. De países onde não existem tais promessas políticas, nem confiança (ou ilusão) de que o governo protegerá os trabalhadores no futuro. Devido a essa insegurança, os asiáticos tentam se garantir por conta própria. Em 1990, os chineses poupavam 15% de sua renda pessoal disponível. Vinte anos depois, em 2010, a taxa de poupança chinesa já estava em 30%. O FMI informou que a taxa de poupança pessoal deles atingiu os 50% em 2012, tornando-se a maior do mundo!

A cautela asiática acaba por financiar a falta de juízo de nossos consumidores incautos. Esse aumento da poupança no leste, levando a uma farta oferta de crédito no oeste, gerou uma crise de endividamento e alavancagem nos países mais avançados. Tanto no consumo, como nos investimentos especulativos. A crise de 2008 deveria evidenciar o elefante na sala, que é o endividamento das famílias, dos bancos e das empresas. Na ocasião, a dívida desses segmentos privados nos EUA totalizava cerca de 300% do PIB norte-americano! Enquanto a dívida pública rondava os 65%. Com o estouro da bolha de hipotecas e especulação imobiliária nos EUA, pudemos ver alguma desalavancagem no setor privado. Seu endividamento desceu para 245% do PIB. Porém, para evitar uma recessão profunda, o governo teve que aumentar seu déficit fiscal, gastando além de suas receitas, e o endividamento público foi daqueles 65% em 2008, para os atuais 100% do PIB.

Mais falado e criticado, o endividamento público desvia a atenção do principal problema. É que o endividamento privado norte-americano é muito maior! Ele retraiu pouco e já foi estimulado a subir novamente. Em valores nominais, atingiu o auge aos US$ 42,6 trilhões em 2008, recuou até US$ 39 trilhões em 2011, e voltou a aumentar para US$ 40,8 trilhões em 2013. O elefante se mexeu, mas não arredou o pé da sala!

Tanto crédito dirigido ao consumo imediato parece omitir certas implicações básicas: A) ou desfalcamos o consumo futuro em prol do atual; B) ou teremos uma onda de calotes de grandes proporções... Talvez ambos ocorram. De outra forma, essa expansão do consumo a prestações só será sustentável enquanto salários, empregos, população ativa e produtividade aumentarem de forma rápida e constante - mas ao ritmo atual, é utopia.

Uma retração do consumo e/ou um grande calote geram um cenário deflacionário. A ameaça é tão clara, que a esperança dos Bancos Centrais dos EUA e do Japão é imprimir dinheiro suficiente para evitar a queda generalizada nos preços de mercadorias e serviços. A deflação só iria piorar as coisas para um setor privado tão endividado (o dinheiro se escasseia e se valoriza, deixando as dívidas mais caras que os bens ainda não quitados). Nesses países mais "ricos" (paradoxalmente cheios de dívidas), a única inflação óbvia até agora vem ocorrendo no mercado de ações - nos EUA principalmente.

É bom deixar claro que a poupança de uns deve realmente viabilizar o crédito a outros (de outra forma não renderiam juros). Mas não para o consumo! E sim para os investimentos privados e públicos em infraestrutura, educação, tecnologia, transporte, saúde, produtividade, vagas de trabalho e formação de mão de obra capacitada e especializada. São esses investimentos que têm o potencial de gerar retornos para todos. O endividamento só é admissível quando tem a perspectiva de se autofinanciar mais adiante. De outra forma, o financiamento de gastos não produtivos (como sapatos e roupas a prestação) ou investimentos apenas especulativos (alavancagem com margens e termos nas corretoras) se tornam semelhantes a um esquema de pirâmide. Um esquema Ponzi que, em algum momento, colapsa!

Consumo compulsivo, obesidade mórbida, crises existenciais, bolhas financeiras, violência fútil e desastres ecológicos parecem cada vez mais motivados pela dominante cultura ocidental de consumo. Se fôssemos observados por alguma espécie mais evoluída, como seríamos chamados? Homo sapiens sapiens ou Homo emptoris incautus?


Copyright © Sebastião Buck Tocalino


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